Lugar comum.



Sou uma mulher comum, figuro entre a dor e o prazer. Engano-me nessa ilusão que é a vida. Talvez sejam esses olhos meus, ingênuos, ou quem sabe o som que toca lá fora, extirpando meus ouvidos. Talvez eu já tenha até perdido os sentidos. Nesse ritmo contínuo e discreto. Olho pra mesa, você do outro lado, tão dono de si, segura seu jornal, indiferente. Eu já devia ter largado tudo, eu sei. "Mas (esse) meu coração poeta, projeta-me em tal solidão, que às vezes assisto a guerras e festas imensas, sei voar e tenho as fibras tensas e sou um." como disse Caetano na música que tocava ao fundo. Então olho pra nós, dois olhos sem cor, dois estranhos em um pequeno círculo sem graça. Você. Acorda. Beija a minha testa. Escova os dentes. Toma café. Pergunta: "onde está a minha meia?". Eu respondo. Senta-se à mesa. Toma o café. Lê o jornal. Dá-me bom dia. Diz que chega a tempo pro jantar. Chega. Dorme no sofá. Dizem que quando a gente está morrendo, passa um filme na nossa cabeça. Então eu penso que não posso só lembrar do agora. Desses cabelos grisalhos, desses olhos cinza, da tristeza nas pálpebras. Mas insisto em questionar minha realidade. E penso que o menino moreno nunca existiu, que o seu sorriso era forçado, que aquelas flores foram apenas pra uma conquista, que não havia verdade em lugar nenhum dessa história. As palavras sempre pela metade. Os suspiros inventados. Um amor sonhado. Tudo. Quase. Voltei pra mesa. Você continua ali sentado, sem se dar conta. Tapei os ouvidos para não ouvir o seu "bom dia", cansei dessas manhãs - café com pão e azia. Corrói-me o esôfago. Dois reflexos borrados na existência cotidiana.
Mas aí você chega e entra pela porta do apartamento, me pega no colo com um sopro gelado que percorre a nunca e chega aos meus ouvidos, sussurrando que me ama. E eu acredito. Tuas mãos geladas em baixo das cobertas quentes. Eu queria sentar pra conversar, eu queria falar que não dá mais, eu soluço e você me agarra e me desarma, e as palavras perdem o rumo. Vejo então o nosso amor em volta de uma beleza inquestionável E me pego pensando que nunca é demasiado amar. Mas você esqueceu de escrever no espelho do banheiro.
E o outro dia chega e a noite passada não figura noutro lugar se não no passado. No lugar comum da nossa existência. São imagens de um futuro que não ensina caminhar sozinho. De dias gastos, de um viver exaurido.

É que sou uma mulher comum, figurando entre o desejo e a desistência.

2 comentários:

Ana Luísa disse...

Tão lindo e verdadeiro esse texto.. Realmente, a gente sempre vive entre pólos.. Principalmente quando se trata de paixão!
Beijos

Déborah Cecília disse...

Ulli,

Apaixonei-me.

Preciso lhe dar um abraço.